Eu estava na faculdade de Direito quando li pela primeira vez Dom Casmurro, uma edição que comprei em um sebo. Achei, então, que Capitu era uma santa, uma pobrezinha; e ele, Bentinho, um neurótico, um doido varrido, histérico. Conversei com as minhas colegas, éramos seis mulheres, sobre a leitura, e eu dizia: 'Não pode isso, esse homem é um louco, neurastênico, desesperado, casado com uma santa em que via a traição.' Enfim, não li mais o livro. A segunda leitura foi na maturidade. Estava casada com o Paulo Emílio Sales Gomes e preparávamos Capitu (roteiro filmado por Paulo César Saraceni). Reli o livro e disse ao Paulo: 'Mudei completamente de idéia, a mulher traiu ele sim, o filho não era dele.' E ele me perguntou: 'Você tem certeza? Cuco, você não pode ser juiz, temos que suspender o juízo, como o próprio Machado queria.' E eu: 'Mas eu não posso suspender, esse homem é um doido, coitada dessa mulher.' 'Cuco, não vista a toga de juiz. Vamos apresentar o roteiro como está no livro. Você está ficando com a cara do Bentinho!' 'E você então está me traindo' (risos).
E hoje: Capitu traiu Bentinho?
Eu já não sei mais (risos). Minha última versão é essa, não sei. Acho que enfim suspendi o juízo. No começo, ela era uma santa; na segunda, um monstro. Agora, na velhice, eu não sei. Só tem uma coisa que eu ressalto. Estava conversando com minha neta outro dia. Bentinho fica sabendo que o filho, aquela criança linda, que tanto o amava, é filho de Escobar, que era uma beleza de homem. Vamos aceitar a opinião de Bentinho, o filho então não é dele. Mas ele fica sabendo que o filho morreu e escreve: 'Jantei bem e fui ao teatro.' Não gostei disso, achei duro demais. Mesmo que o filho não fosse dele, ele não podia 'jantar bem'. Eu disse ao Paulo Emílio: ele não podia ter ido comer bife e batatas logo depois de saber da morte do menino. É muita frieza. E o Paulo: 'Não é frieza. Ele via o Escobar no filho, não podia ter ficado triste.' Nós dois quase brigamos (risos). O Paulo entrava na escrita machadiana para preservar a dúvida, o oculto, o encoberto. Machado adorava isso, nada aparecia claramente. Dizia o Paulo: 'Se para o Bentinho o filho não era dele, podia até sair para dançar aquela noite.' E eu reclamava: 'Isso é horrível, Paulo, precisa entrar na sua cabeça que se ele desejava tanto o filho, amava tanto a Capitu, não podia ir ao teatro e jantar bem.'
Você tem uma cena preferida?
Para mim, a cena principal é o momento em que Escobar está morto no caixão, a viúva se aproxima e olha firmemente para o morto; Capitu faz o mesmo - e as duas têm o mesmo olhar. Bentinho estremece inteiro. Olha para as duas e reconhece nelas a mesma expressão. Essa é a cena de um artista maduro. Disse em uma entrevista certa vez que achava Dom Casmurro mais importante que Madame Bovary. Nele há a dúvida, enquanto a Bovary tem escrito na testa que é adúltera. O Wilson Martins me passou um pito em um artigo (risos).
Mas eu continuo achando. Mas pode ser que Bentinho estivesse enganado, doido, neurótico, olhou para as duas e viu a traição da mulher que perdia o amante onde poderia ter visto uma amiga sentindo a perda de uma pessoa querida.Lembro de um episódio interessante. Não me recordo em que ano foi, mas eu já estava casada com o Paulo. Fizeram uma enquete perguntando a homens e mulheres se Capitu tinha ou não traído Bentinho. Você sabe que as mulheres acharam que ela era amante e os homens ficaram na dúvida? Contei para o Paulo, que disse: 'Mulher não gosta mesmo de mulher, quem gosta de mulher é homem.'
Quantas vezes você leu o livro?
Ah, várias. E agora que você me provocou com esse depoimento fui olhar de novo. Peguei também o roteiro de Capitu e um livro importantíssimo, Antologia Filosófica de Machado de Assis, do Miguel Reale. O Machado conhecia os filósofos todos, Sócrates, Platão, Aristóteles, Hegel, Goethe, lia tudo. O Reale insiste na paixão de Machado pelo Eclesiastes. Você me obrigou a relembrar. Foi bom você me provocar, entrei de novo na aura machadiana. De repente escrevo um livro sobre ele.
Publicada no O Estado de São Paulo em 27/02/2008
postado por Nice
E hoje: Capitu traiu Bentinho?
Eu já não sei mais (risos). Minha última versão é essa, não sei. Acho que enfim suspendi o juízo. No começo, ela era uma santa; na segunda, um monstro. Agora, na velhice, eu não sei. Só tem uma coisa que eu ressalto. Estava conversando com minha neta outro dia. Bentinho fica sabendo que o filho, aquela criança linda, que tanto o amava, é filho de Escobar, que era uma beleza de homem. Vamos aceitar a opinião de Bentinho, o filho então não é dele. Mas ele fica sabendo que o filho morreu e escreve: 'Jantei bem e fui ao teatro.' Não gostei disso, achei duro demais. Mesmo que o filho não fosse dele, ele não podia 'jantar bem'. Eu disse ao Paulo Emílio: ele não podia ter ido comer bife e batatas logo depois de saber da morte do menino. É muita frieza. E o Paulo: 'Não é frieza. Ele via o Escobar no filho, não podia ter ficado triste.' Nós dois quase brigamos (risos). O Paulo entrava na escrita machadiana para preservar a dúvida, o oculto, o encoberto. Machado adorava isso, nada aparecia claramente. Dizia o Paulo: 'Se para o Bentinho o filho não era dele, podia até sair para dançar aquela noite.' E eu reclamava: 'Isso é horrível, Paulo, precisa entrar na sua cabeça que se ele desejava tanto o filho, amava tanto a Capitu, não podia ir ao teatro e jantar bem.'
Você tem uma cena preferida?
Para mim, a cena principal é o momento em que Escobar está morto no caixão, a viúva se aproxima e olha firmemente para o morto; Capitu faz o mesmo - e as duas têm o mesmo olhar. Bentinho estremece inteiro. Olha para as duas e reconhece nelas a mesma expressão. Essa é a cena de um artista maduro. Disse em uma entrevista certa vez que achava Dom Casmurro mais importante que Madame Bovary. Nele há a dúvida, enquanto a Bovary tem escrito na testa que é adúltera. O Wilson Martins me passou um pito em um artigo (risos).
Mas eu continuo achando. Mas pode ser que Bentinho estivesse enganado, doido, neurótico, olhou para as duas e viu a traição da mulher que perdia o amante onde poderia ter visto uma amiga sentindo a perda de uma pessoa querida.Lembro de um episódio interessante. Não me recordo em que ano foi, mas eu já estava casada com o Paulo. Fizeram uma enquete perguntando a homens e mulheres se Capitu tinha ou não traído Bentinho. Você sabe que as mulheres acharam que ela era amante e os homens ficaram na dúvida? Contei para o Paulo, que disse: 'Mulher não gosta mesmo de mulher, quem gosta de mulher é homem.'
Quantas vezes você leu o livro?
Ah, várias. E agora que você me provocou com esse depoimento fui olhar de novo. Peguei também o roteiro de Capitu e um livro importantíssimo, Antologia Filosófica de Machado de Assis, do Miguel Reale. O Machado conhecia os filósofos todos, Sócrates, Platão, Aristóteles, Hegel, Goethe, lia tudo. O Reale insiste na paixão de Machado pelo Eclesiastes. Você me obrigou a relembrar. Foi bom você me provocar, entrei de novo na aura machadiana. De repente escrevo um livro sobre ele.
Publicada no O Estado de São Paulo em 27/02/2008
postado por Nice