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- Você disse que seria a menina mais feliz do mundo quando pisasse comigo em Amsterdã.
- Tenho ódio de Amsterdã. Eu era tão perfumada, tão limpa. Me sujei com você.
- Nos sujamos quando acabou o amor. Agora vem, vamos dormir naquele banco. Vem, Ana.
Ela puxou-lhe a barba.
- Quando foi que fiquei assim tão imunda, fala!
- Mas eu já disse, quando deixou de me amar.
- Mas você também - ela soqueou-lhe fracamente o peito. - Nega que você também...
- Sim, nós dois. A queda dos anjos, não tem um livro? Ah, que diferença faz. Vem.
- O banco é frio.
Quando ele a tomou pela cintura, chegou a se assustar um pouco: era como se estivesse carregando uma criança, precisamente aquela menininha que fugira há pouco com seu pedaço de bolo. Quis se comover. E descobriu que se inquietara mais com o susto da menina do que com o corpo que agora carregava como se carrega uma empoeirada boneca de vitrina, sem saber o que fazer com ela. Depositou-a no banco e sentou-se ao lado. Contudo, era lua crescente. E estavam
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Nascida em 19 de abril de 1923, Lygia completa 88 anos, e suas obras continuam a gerar comentários, agrados e outras histórias. Conhecer sua literatura é dar de cara com personagens interessantes, misteriosos, viscerais. Há toda uma construção na literatura da prestigiada escritora, que usa e abusa das vozes, do pensamento alto e da confusão.
"Ciranda de Pedra" é seu primeiro romance (já havia publicado livros de contos anteriormente), lançado em 1954, e causando espanto em alguns críticos, pela solidez das ideias de uma moça, que nem sequer era professora ou jornalista, mas sim advogada. Formou-se na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e nunca largou a profissão, tendo se aposentado como procuradora no Instituto de Previdência do Estado de São Paulo.
A vontade de escrever ela sempre teve, e foram os amigos Carlos Drummond de Andrade e Erico Veríssimo, entre outros, que a incentivaram a publicar mais textos. Talvez porque eles fossem sábios ou divertidos, ela acatou as sugestões, e em 1963 lança "Verão no Aquário", vencedor do prêmio Jabuti.
Na década de 70, o livro de contos "Antes do Baile Verde" é premiado na França, e Lygia apresenta seu terceiro romance "As Meninas", uma das obras mais conhecidas de sua carreira, que narra os desencontros de três garotas durante a ditadura militar.
Lygia é uma escritora engajada e vive a questão do terceiro mundo, buscando em suas obras tocar nos assuntos mesmo que de forma suave ou mascarada, contudo, sem esconder a realidade da cena de seu país.
A produção literária não cessa, e ao longo das décadas seguintes acumula os mais diversos méritos, a consagrá-la, definitivamente, em 2005 com o prêmio Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa, pelo conjunto da obra.
Na programação, estão filmes escolhidas pela escritora e outros inspirados em seus trabalhos
No mês em que completou 88 anos, a escritora Lygia Fagundes Telles será homenageada em uma mostra de cinema a partir do dia 26, na Cinemateca Brasileira, zona sul de São Paulo, com títulos selecionados por ela própria e outros inspirados ou adaptados de suas obras.
Nascida no dia 19 de abril de 1923, ela publicou seus primeiros textos no final da década de 1930 e alcançou sua maturidade intelectual com o romance Ciranda de Pedra(1954). Lygia Fagundes Telles publicou, entre outros livros, Antes do Baile Verde (1970), As Meninas (1973) e Seminário dos Ratos (1977). Ganhou o Prêmio Jabuti por quatro oportunidade e o Prêmio Camões, um dos maiores em língua portuguesa. Foi casada com o crítico de cinema Paulo Emilio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira.
Escolhidos pela escritora estão, entre outros clássicos do cinema, O Atalante, de Jean Vigo,O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci, Morte em Veneza, de Luchino Visconti, e A Doce Vida, de Federico Fellini. Dentre as obras inspiradas ou adaptadas de seus livros, destacam-se As Meninas, de Emiliano Ribeiro, As Três mortes de Solano, de Roberto Santos, o curta O Menino, de Luiz Fernando Sampaio, que conta com diálogos assinados pela própria escritora, e o raroLe Ore Nude, de Mario Vicario, longa realizado em 1965, cuja atmosfera e personagens dialogam com o universo romanesco de Lygia Fagundes Telles.
Homenagem à Lygia Fagundes Telles
De 26 de abril a 15 de maio
Largo Senador Raul Cardoso, 207, próximo ao Metrô Vila Mariana
R$ 8 (inteira); R$ 4 (meia)
(11) 3512-6111 (ramal 215)
"Escrever é futucar a memória", diz a autora de "As Meninas" para explicar suas reticências ao falar. Principalmente quando a conversa se aproxima de revelações mais dolorosas sobre a vida e os despenhadeiros da alma, que ela como poucos retrata em seus livros. Mário dá um empurrãozinho discreto e respeitoso. O suficiente para Lygia seguir "futucando as lembranças".
Ela fala da morte prematura do primeiro marido e destacado jurista Gofredo Telles, e mais prematura e dolorosa ainda morte do filho, Gofredo da Silva Telles Neto, o brilhante e promissor documentarista paulista. O jovem com profundas ligações com a Bahia, que amava Salvador com a devoção dos iniciados no axé, nos terreiros de candomblé, da gente que vive no casario do bairro de Santo Antonio, do Além do Carmo e do Pelourinho. Espaços que o filho resgatou "em um dos mais bonitos e comoventes filmes que realizou antes de partir", recorda a mãe comovida.
A escritora lembra também do segundo marido, o saudoso Paulo Emílio Salles Gomes, professor da USP, estudioso e mestre insuperável das coisas ligadas à história e à cultura do cinema brasileiro. Pioneiro das Jornadas de Cinema da Bahia nos anos 60/70, evento hoje internacional, criado e mantido sempre por Guido Araújo.
Perdas e danos que fizeram a autora de "Ciranda de Pedras" e "Antes do Baile" ficar "sozinha, reclusa, solitária". Lygia conta que foi salva das profundezas da depressão pelos livros e personagens de sua obra com os quais segue convivendo, "inclusive o gato", um de seus personagens recorrentes. Salva também, confessa, pela entrada na ABL, onde se sente à vontade na hora do chá e das conversas com os seus iguais.
Ligia confessa no ar, ao final da conversa com Mário, que só fica preocupada quando eventualmente dá um espirro na Academia e sempre aparece alguém cheio de expectativas com a pergunta:
"É pneumonia?"
Se fumasse, teria enfrentado a turma politicamente correta e pedido um legítimo charuto cubano para completar o prazer do domingo em casa. O que se pode pedir mais depois de saborear uma entrevista tão densa e tão rica, mesmo em reprise, com Lygia Fagundes Telles?
Vitor Hugo Soares é jornalista, editor do site-blog Bahia em Pauta ( http://bahiaempauta.com.br/).
Nice