Buarque de Holanda.
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
A BELEZA DE LYGIA
Buarque de Holanda.
quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Ciranda de Pedra [3]
terça-feira, 28 de outubro de 2008
4.º Prêmio BRAVO! Prime de Cultura
Com apresentação do ator Lázaro Ramos, a revista BRAVO! realizou na noite de segunda-feira, 27, a entrega do 4.º Prêmio BRAVO! Prime de Cultura, na Sala São Paulo. O grande destaque na cerimônia foi o ator Wagner Moura, que levou o prêmio de Artista Prime do Ano, escolhido pela votação do público. Na edição do ano passado, o premiado nesta categoria foi o veterano Paulo Autran, morto em outubro de 2007. Moura concorria com a artista plástica Beatriz Milhazes, José Padilha, Laurentino Gomes, Ney Matogrosso e o maestro Roberto Minczuk.
Outro momento importante da cerimônia foi a entrega do prêmio de Melhor Livro para Cristóvão Tezza, autor de O Filho Eterno. A entrega foi feita pela escritora Lygia Fagundes Telles, aplaudida de pé pela platéia enquanto subia ao palco.
O escritor Cristóvão Tezza recebeu o troféu de Melhor Livro ("O Filho Eterno") das mãos de Lígia Fagundes Telles. Foto: Tiago Queiroz/AE
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
'Capitu era uma santa; virou monstro. Hoje, não sei'
E hoje: Capitu traiu Bentinho?
Eu já não sei mais (risos). Minha última versão é essa, não sei. Acho que enfim suspendi o juízo. No começo, ela era uma santa; na segunda, um monstro. Agora, na velhice, eu não sei. Só tem uma coisa que eu ressalto. Estava conversando com minha neta outro dia. Bentinho fica sabendo que o filho, aquela criança linda, que tanto o amava, é filho de Escobar, que era uma beleza de homem. Vamos aceitar a opinião de Bentinho, o filho então não é dele. Mas ele fica sabendo que o filho morreu e escreve: 'Jantei bem e fui ao teatro.' Não gostei disso, achei duro demais. Mesmo que o filho não fosse dele, ele não podia 'jantar bem'. Eu disse ao Paulo Emílio: ele não podia ter ido comer bife e batatas logo depois de saber da morte do menino. É muita frieza. E o Paulo: 'Não é frieza. Ele via o Escobar no filho, não podia ter ficado triste.' Nós dois quase brigamos (risos). O Paulo entrava na escrita machadiana para preservar a dúvida, o oculto, o encoberto. Machado adorava isso, nada aparecia claramente. Dizia o Paulo: 'Se para o Bentinho o filho não era dele, podia até sair para dançar aquela noite.' E eu reclamava: 'Isso é horrível, Paulo, precisa entrar na sua cabeça que se ele desejava tanto o filho, amava tanto a Capitu, não podia ir ao teatro e jantar bem.'
Você tem uma cena preferida?
Para mim, a cena principal é o momento em que Escobar está morto no caixão, a viúva se aproxima e olha firmemente para o morto; Capitu faz o mesmo - e as duas têm o mesmo olhar. Bentinho estremece inteiro. Olha para as duas e reconhece nelas a mesma expressão. Essa é a cena de um artista maduro. Disse em uma entrevista certa vez que achava Dom Casmurro mais importante que Madame Bovary. Nele há a dúvida, enquanto a Bovary tem escrito na testa que é adúltera. O Wilson Martins me passou um pito em um artigo (risos).
Mas eu continuo achando. Mas pode ser que Bentinho estivesse enganado, doido, neurótico, olhou para as duas e viu a traição da mulher que perdia o amante onde poderia ter visto uma amiga sentindo a perda de uma pessoa querida.Lembro de um episódio interessante. Não me recordo em que ano foi, mas eu já estava casada com o Paulo. Fizeram uma enquete perguntando a homens e mulheres se Capitu tinha ou não traído Bentinho. Você sabe que as mulheres acharam que ela era amante e os homens ficaram na dúvida? Contei para o Paulo, que disse: 'Mulher não gosta mesmo de mulher, quem gosta de mulher é homem.'
Quantas vezes você leu o livro?
Ah, várias. E agora que você me provocou com esse depoimento fui olhar de novo. Peguei também o roteiro de Capitu e um livro importantíssimo, Antologia Filosófica de Machado de Assis, do Miguel Reale. O Machado conhecia os filósofos todos, Sócrates, Platão, Aristóteles, Hegel, Goethe, lia tudo. O Reale insiste na paixão de Machado pelo Eclesiastes. Você me obrigou a relembrar. Foi bom você me provocar, entrei de novo na aura machadiana. De repente escrevo um livro sobre ele.
Publicada no O Estado de São Paulo em 27/02/2008
postado por Nice
Clarice Lispector entrevista Lygia
– Como nasce um conto? Um romance? Qual é a raiz de um texto seu?
– São perguntas que ouço com freqüência. Procuro então simplificar essa matéria que nada tem de simples. Lembro que algumas idéias podem nascer de uma simples imagem. Ou de uma frase que se ouve por acaso. A idéia do enredo pode ainda se originar de um sonho. Tentativa vã de explicar o inexplicável, de esclarecer o que não pode ser esclarecido no ato da criação. A gente exagera, inventa uma transparência que não existe porque – no fundo sabemos disso perfeitamente – tudo é sombra. Mistério. O artista é um visionário. Um vidente. Tem passe livre no tempo que ele percorre de alto a baixo em seu trapézio voador que avança e recua no espaço: tanta luta, tanto empenho que não exclui a disciplina. A paciência. A vontade do escritor de se comunicar com o seu próximo, de seduzir esse público que olha e julga. Vontade de ser amado. De permanecer. Nesse jogo ele acaba por arriscar tudo. Vale o risco? Vale se a vocação for cumprida com amor, é preciso se apaixonar pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros aspectos as coisas falham (tantas falham) que ao menos fique a alegria de criar.
– Para mim a arte é uma busca, você concorda?
– Sim, a arte é uma busca e a marca constante dessa busca é a insatisfação. Na hora em que o artista botar a coroa de louros na cabeça e disser, estou satisfeito, nessa hora mesmo ele morreu como artista. Ou já estava morto antes. É preciso pesquisar, se aventurar por novos caminhos, desconfiar da facilidade com que as palavras se oferecem. Aos jovens que desprezam o estilo, que não trabalham em cima do texto porque acham que logo no primeiro rascunho já está ótimo, tudo bem – a esses recomendo a lição maior que está inteira resumida nestes versos de Carlos Drummond de Andrade:
Chega mais perto e contempla as palavras.Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta pobre ou terrível que lhe deres:Trouxeste a chave?– Você, Clarice, que é dona de um dos mais belos estilos da nossa língua, você sabe perfeitamente que apoderar-se dessa chave não é assim simples. Nem fácil, há tantas chaves falsas. E essa é uma fechadura toda cheia de segredos. De ambigüidades.
– Fale-nos do Seminário dos ratos.
– Procurei uma renovação de linguagem em cada conto desse meu livro, quis dar um tratamento adequado a cada idéia: um conto pode dar assim a impressão de ser um mero retrato que se vê e em seguida esquece. Mas ninguém vai esquecer esse conto-retrato se nesse retrato houver algo mais além da imagem estática. O retrato de uma árvore é o retrato de uma árvore. Contudo, se a gente sentir que há alguém atrás dessa árvore, que detrás dela alguma coisa está acontecendo ou vai acontecer, se a gente sentir, intuir que na aparente imobilidade está a vida palpitando no chão de insetos, ervas – então esse será um retrato inesquecível. O escritor – ai de nós – quer ser lembrado através do seu texto. E a memória do leitor é tão fraca. Leitor brasileiro, então, tem uma memória fragilíssima, tão inconstante. O padre Luís (um padre santo que fez a minha primeira comunhão, foi ele quem me apresentou a Deus) me contou que um dia conduziu uma procissão no Rio. A procissão saía de uma igreja do Posto Um, dava uma volta por Copacabana e retornava em seguida. Muita gente, todo mundo cantando, velas acesas. Mas à medida que a procissão ia avançando, os fiéis iam ficando pelas esquinas, tantos botequins, tantos cafés. E o mar? Quando finalmente voltou à igreja, ele olhou para trás e viu que restara uma meia dúzia de velhos. E os que carregavam os andores. “As pessoas são muito volúveis”, concluiu padre Luís. Em outros termos, o mesmo diria Garrincha quando um mês depois de ser carregado nos ombros por uma multidão delirante, com o mesmo fervor e no mesmo estádio foi fragorosamente vaiado. Tão volúveis...
– Isso não é pessimismo?
– Não sou pessimista, o pessimista é um mal-humorado. E graças a Deus conservo o meu humor, sei rir de mim mesma. E (mais discretamente) do meu próximo que se envaidece com essas coisas, do próximo que enche o peito de ar, abre o leque da cauda e vai por aí, duro de vaidade. De certeza, tantas medalhas, tantas pompas e glórias, eu ficarei ! Não fica nada. Ou melhor, pode ser que fique, mas o número dos que não deixaram nem a poeira é tão impressionante que seria inocência demais não desconfiar. Sou paulista, e como o mineiro, o paulista é meio desconfiado. Então, o certo é dizer com Millôr Fernandes: “quero ser amado em Ipanema, agora, agora”. Em Ipanema vou lançar esse Seminário dos ratos. O que já é alguma coisa...
– Como nasceu esse título?
– Houve em São Paulo um seminário contra roedores. Lá acontecem diariamente dezenas de seminários sobre tantos temas, esse era contra os ratos. “Daqui por diante eles estarão sob controle”, anunciou um dos organizadores, e o público caiu na gargalhada, porque nessa hora exata um rato atravessou o palco. Tantos projetos fabulosos, tantas promessas. Discursos e discursos com pequenos intervalos para os coquetéis. Palavras, palavras. E de repente pensei numa inversão de papéis, ou seja, nos ratos expulsando todos e se instalando soberanos no seminário. “Que século, meu Deus”, exclamariam repetindo o poeta. E continuariam a roer o edifício. Assim nasceu esse conto.
– Quais são os temas do livro?
– São quatorze textos que giram em torno de temas que me envolvem desde que comecei a escrever: a solidão, o amor e o desamor. O medo. A loucura. A morte – tudo isso que aí está em redor. E em nós. Quando fico deprimida vejo claramente essas três espécies em extinção: o índio, a árvore e o escritor. Mas reajo, não sei tra- balhar sem a esperança no coração. Sou de Áries, recebo a energia do sol. E de Deus, o que vem a dar no mesmo,tenho paixão por Deus.
– Há muita gente louca no Seminário dos ratos?
– Sim, há um razoável número de loucos nesse meu livro e também nos outros. Mas a loucura não anda mesmo por aí galopante? “Os homens são tão necessariamente loucos que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”, disse Pascal.
- O que mais lhe perguntam?
– Eis o que me perguntam sempre: compensa escrever? Economicamente, não. Mas compensa – e tanto – por outro lado através do meu trabalho fiz verdadeiros amigos. E o estímulo do leitor? E daí? “As glórias que vêm tarde já vêm frias”, escreveu o Dirceu de Marília. Me leia enquanto estou quente.
Postado por Nice
sábado, 30 de agosto de 2008
Tertúlia Literária continuação...
Olhos de Ressaca: olhar que vai e vem...como o mar...a ressaca...o mar vai levando tudo...depois vem devolvendo o que levou...
Meninas queridas, que estiveram compartilhando esse momento lindo ao lado de Lygia.
-Marília, Carla, Cida e Nice-
E a comunidade de todos aqueles que já sentiram a dor e o êxtase das "palavras-faca" de Lygia Fagundes Telles...
Orkut com os 5.585 membros.
Tesouros de Lygia; autógrafos!!!
"Lygia Fagundes Telles é uma definidora de mistérios, captando enigmáticos instantes, como uma antena que escrevesse."
Natércia Freire (Portugal)
"Uma escritora que transcende o tempo e banaliza com sua imortalidade a efemeridade e os mistérios da vida. Temos entre nós um mito, uma esfinge, um enigma. Temos de abraçá-la como se a literatura tomasse forma, cor, sabor... Suas obras emanam imortalidade, sua sobriedade e fome de viver nos acalanta para sobrevivermos perante a dura verdade de "sermos feito de carne".
sexta-feira, 29 de agosto de 2008
Cumplicidade
Elzira
"Ela chegou em casa outra pessoa. Não escreveu mais versos, não tocou mais o cravo, comia e falava pouco. Todas as noites punha no peito uma toalha ensopada de água. Ficou tuberculosa. Seis meses depois da partida dele, morreu. Quiseram chamar o doutor Paixão. Mas não havia naquele tempo jornal nem internet. Ele nem soube da morte dela", contou Lygia a Machado.Na cidade castigada pela seca não havia flores nos jardins para a sepultura. É então que uma sineta toca. "Chega um moço lindo, com uma braçada de lírios recém-colhidos para cobrir o caixão de Elzira." Antes que o pai alcançasse o mensageiro para identificá-lo, ele se evapora. "Era um anjo", conclui Lygia, que desde então abraçou o mistério literário, que é outra forma de falar que tudo que é narrativo é parte do mistério do mundo.
segunda-feira, 25 de agosto de 2008
Loucura
Áudio de trechos recitados por Lygia:
*Trecho de Invenção e Memória.
http://www.klickescritores.com.br/cd/lygia.htm
ANTES DO BAILE VERDE (1972)
*
"Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
(...)
- Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso. "
*
"- Você acha, Lu?- Acha o quê?- Que ele está morrendo?- Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite.- Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas... E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante.- Radiante? - espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. - E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo.- Mas quando fui lá ele estava dormindo tal calmo, Lu.- Aquilo não é sono. É outra coisa."
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora não acredita em Deus?
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas…"
"– E se não vê a sombra das minhas asas é porque elas foram cortadas.
(...)
Era o círculo eterno sem começo nem fim. Um dia, Gisela diria à mãe qual era o escolhido. Fernanda o convidaria para jantar conosco, exatamente como a mãe dela fizera comigo. O arzinho de falsa distraída em pleno funcionamento na inaparente teia das perguntas, “diz que prolonga a vida a gente amar o trabalho que faz. Você ama o seu?…” A perplexidade do moço diante de certas considerações tão ingênuas, a mesma perplexidade que um dia senti. Depois, com o passar do tempo, a metamorfose na maquinazinha social azeitada pelo hábito: hábito de rir sem vontade, de chorar sem vontade… O homem adaptável, ideal. Quanto mais for se apoltronando, mais há de convir aos outros, tão cômodo, tão portátil. Comunicação total, mimetismo: entra numa sala azul fica azul, numa vermelha vermelho. Um dia se olha no espelho: de que cor eu sou? Tarde demais para sair pela porta afora."
*
"— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta
com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me
desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada?
— Eu toco saxofone."
*
"Com um gesto casual, atirei meu paletó em cima da mesa, cobrindo o rascunho de um conto que começara naquela manhã. - Já é tempo de uvas? - perguntei colhendo um bago. Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa, sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto."
CIRANDA DE PEDRA (2)
domingo, 24 de agosto de 2008
AS MENINAS (1973)
(...)
"Parece que esse é meu romance mais importante, o Paulo Emílio gostava demais dele. Lá também há um contrabando da realidade para a ficção. O panfleto político que a personagem subversiva reproduz para uma freira existiu de verdade, foi o Paulo Emílio quem me mostrou. Ele disse: olha, põe esse panfleto, que eu acho importante. Eu achei perfeito. Eram os anos de chumbo. Como eu disse no texto que está em Conspiração de Nuvens, sorte que na época o censor deve ter achado o livro muito chato e não foi adiante. Se tivesse chegado na página do panfleto, o romance teria sido censurado."
"- Desde ontem ela não aparece. Telefonou dizendo que está na chácara do noivo.
- Noivo. A senhora me desculpe, Madre Alix, mas Ana é o produto desta nossa bela sociedade, tem milhares de Anas por aí, algumas agüentando a curtição. Outras se despedaçando. As intenções de socorro e et cetera são as melhores do mundo, não é o inferno que está exorbitando de boas intenções, é esta cidade. Vejo a senhora sair com outras senhoras bondosas dando sopinha aos mendigos. Bons conselhos, cobertores. Eles bebem a sopinha, ouvem os conselhos e vão correndo trocar o cobertorzinho pelo litro de cachaça porque o dia amanheceu mais quente, pra que cobertor? Tudo continua como na véspera com uma noite de demência a mais fornecida pelo donativo. Um padre nosso amigo foi ensinar catecismo à menininha de nove anos que o pai vendeu pro bordel e quase morreu de tanto apanhar do agregado da proprietária. Aprendeu a lição, ô se aprendeu. Caridade individual é romantismo, cheguei a essa conclusão não faz muito tempo. Agora ele funciona com a gente mas dentro de outra perspectiva. Nos esquecemos, nos descuidamos, diz Bela Akmadulina. E tudo caminha ao contrário.
Vou até a garrafa térmica e me sirvo de mais café mas queria um sanduíche. Presunto e queijo. Uma abelha se debate contra a vidraça e de repente seu zunido fica mais importante do que nossa fala. Mas de onde veio essa abelha numa noite dessas? Gostaria de escrever como ela faz mel. E quase me dobro num riso desatinado, era bem doidona a cigarra da fábula com suas cantorias mas a formiga de vassoura na mão não ficava atrás.- Tinha tanta coisa que lhe dizer, filha. E já nem sei por onde começar. Essa sua política, por exemplo. Me pergunto se você está em segurança.
- Segurança? Mas quem é que está em segurança? Aparentemente a senhora pode parecer muito segura aí na sua redoma mas é bastante inteligente pra perceber do que essa redoma está lhe protegendo. Alguns padres romperam o vidro como aquele de que lhe falei. Por acaso estão em segurança? Não. Nem estão pensando em segurança quando se deitam no colchão sem travesseiro ou quando rezam suas missas num caixote feito altar.
Ela sorriu. Um sorriso triste que me arrependi de provocar.
- Mas não estou na redoma, Lia. É neste ponto que você se engana como se enganou também quando disse que eu queria lhe apontar a porta. Deus sabe que meu desejo maior é protegê-la e guardá-las para sempre, como se isso fosse possível. Se não interfiro, se não me aproximo é porque não quero que pensem em vigilância, fiscalização. Vocês bateriam as asas mais depressa ainda.
Pronto, magoou-se. Essa minha mania de discurso, baiano com subversão pode dar noutra coisa?
- Não sei explicar, Madre Alix, mas o que queria dizer é que embora resguardada a senhora luta a seu modo, respeito sua luta. Respeito até a luta dos que querem nos destruir, respeito sim senhora, eles estão na deles. Como estamos na nossa, enfraquecidos, traídos, divididos, não calcula como estamos divididos. Mas vamos agüentando. Um que fique tem que correr como um cão danado pra passar o facho ao seguinte que recebe e sai correndo até o próximo que nem estava na corrida, entende. De mão em mão. É demorado mas não estamos mais com tanta pressa.
- Facho, Lia? Você fala em facho, mas o que vejo é um levar ao outro violência, morte. Um rastro de sangue é o que vocês vão deixando por onde passam. Temos um Condutor Supremo e do Seu esquema transcendente a violência foi riscada. A espiritualidade...
Olha aí, vitória da espiritualidade. Arranco uma lasca da unha que vem com um fiapo de pele. O sangue brota. Chupo o dedo. Uma bala dum-dum no peito doeria menos."
TIGRELA - MEUS CONTOS ESQUECIDOS
sábado, 23 de agosto de 2008
Lygia fala sobre sua vocação de escritora...
O CHAMADO
Nos tempos dourados aprendi duas palvras que acabaram tendo tanta importância no meu ofício, a palavra liberdade e a palavra justiça. Mas foi no terreno dos esportes que conheci realmente a disciplina, segredo do modesto e quilíbrio desta escritora neste indisciplinado país.
(...)
O chamado. Obedecer a esse chamdo é uma destinação e não condenação, porque nesta entra o amargor que transforma o escritor numa esponja de fel. Obedecer à vocação seria simplesmente exercer o ofício da paixão, era o que me ocorria quando diante da pequena mesa abria o estojo com as canetas, escolhia a pena preferida, molhava no tinteiro e começava a escrever minhas histórias. Mas tomando cuidado para não sujar os dedos, esfregar o mata-borrão melhorava, mas cuidado com a blusa!
Quando me perguntava o que eu queria ser respondia, Escritora. Mas não falava em vocação, tinha pudor em assumir o ofício porque poderia parecer arrogância com um toque até de soberba. Só mais tarde compreendi que na vocação não está incluída a glória, tantas vocações verdadeiras e o silêncio, ninguém leu, ninguém viu. Vocação seria então apenas isto, atender ao chamado sem se preocupar com o resultado, cumprir o aprendizado da paciência e do amor.
(...)Alguns dos meus textos nasceram de uma simples frase ou de uma imagem, algo que escutei ou apenas vi e retive na memória, essa incompreensível faculdade da memória e sem “Sem a qual eu não poderia pronunciar o meu próprio nome”, como escreveu Santo Agostinho. Contos ou romances que nasceram de algum sonho, enfim, a maior parte dos meus trabalhos deve ter origem lá nos emaranhados do incosciente – a zona vaga e imprecisa do mistério. Impossível determinara as fronteiras do criador, os limites do imaginário e do real. Minha obra tem um certo travo de amargor? Anoiteço às vezes como toda gente mas espero pela manhã com seu bíblico grão de acaso, de loucura. E de imprevisto.
sexta-feira, 22 de agosto de 2008
Autocrítica
Lygia Fagundes Telles: "Eu lia minhas histórias para ele, ouvia suas sugestões. Nós nos dávamos muito bem. Ele realmente me apoiava e me ajudou, pagando a edição desse livro. Infelizmente foi uma estréia prematura: poucos anos depois, o texto não resistiu à minha autocrítica. Nunca mais permiti a republicação desse e de outros textos daquela fase."
Discurso de Posse na ABL
Vejam, meninas, na química há sempre uma larga margem de imprevistos, como na vida, que também desobedece regras e leis...Vocês vão se lembrar disso mais tarde.A esse grão de imprevisto - o principal - fui juntando os acessórios: o acaso que reside nos pequenos acontecimentos fortuitos. E a loucura, o terceiro grão que compõe essa estupenda fórmula, anarquizando uma ciência com a nitidez da matemática. Anarquizando a circunstância do homem e o próprio homem, esse mesmo homem que Pascal considerava tão “necessariamente louco, que não ser louco representaria uma outra forma de loucura”.
A loucura, o acaso e o imprevisto desencadeando reações dentro do mesmo caldeirão. A fogo brando, para evitar o pior.
Dom Pedro I chamava a atenção da ambiciosa Marquesa de Santos (Pedro Calmon a considerava ambiciosa) para a importância de “certas misteriosas combinações”. Que combinações seriam essas? Dom Pedro sabia, ele e certamente esse outro Pedro, o Calmon, que pesquisou e analisou “as vinte mil léguas submarinas” da vida do Rei Cavaleiro. Nessas combinações, que para mim começaram naquele antigo laboratório de química, residiria o luminoso mistério que é o sal da vida.
Creio que foi sob a inspiração dessas combinações instigantes que me veio a idéia de fazer vibrar a corda tensa, de extremos aparentemente antagônicos: numa ponta, Gregório de Mattos, o patrono desta Cadeira no 16. Na outra ponta, Pedro Calmon, o seu último ocupante. Nessa desafiante operação, eis que me surpreendi de repente com a mesma perplexidade daquelas manhãs no laboratório de química, diante das soluções que pareciam desacatar a previsão oficial. Que neste caso seria afastar o baiano tão ilustre que foi Pedro Calmon do antiilustre baiano que foi Gregório de Mattos.
Contudo, aqui estou não só unindo esses extremos mas com eles dando um nó forte e quente, porque são extremos feitos da mesma incomparável matéria dos seres raros. Entrelaçados nas suas raízes por uma paixão comum: a paixão da palavra. A palavra falada. A palavra escrita.
A dementada paixão da palavra que os levou a lutar com a mesma coragem. Com a mesma generosidade - duas virtudes comuns aos dois artistas. Embora, na opinião de Carlos Drummond de Andrade, essa fosse uma luta vã:
Lutar com palavrasé a luta mais vãentanto, lutamosmal rompe a manhã.
Confesso que não vejo o trovador delirante que foi Gregório de Mattos acordando com a manhã, pois era nas noites boêmias que ele apurava sua viola. Quem acordava com os passarinhos era Pedro Calmon, ansioso por iniciar a luta que se assemelha a uma luta de boxe, sim, o escritor atracado à palavra como um boxeur numa contenda que é busca e encontro. Dor e celebração. Com suor e sangue, a palavra verte sangue.
O satírico do século XVII, Gregório de Mattos Guerra, o Boca do Inferno, liberto e libertino, errando “despassarado” de viola a tiracolo por Lisboa, Coimbra, Bahia, Angola e Recife. E os vínculos coincidentes com o bem-comportado orador do século XX, Pedro Calmon Moniz de Bittencourt, historiador e jurista refinado e polido, irônico, mas não sarcástico, colérico às vezes (a cólera é necessária) como no período em que foi reitor e, de peito aberto, defendeu a estudantada contra a polícia. Perspectivo e lúcido como o outro, o falso demente Gregório de Mattos. Um descompondo e o outro compondo, mas testemunhando, cada qual à sua maneira e ao seu tempo, a sua gente e o seu país.
Curioso o destino desses dois baianos iluminados pela paixão da palavra falada. Na sua tormentosa viagem para Ítaca, Ulisses fez-se amarrar com cordas no mastro do navio para assim resistir ao canto sedutor das sereias. Os que ouviram Gregório de Mattos com seu estilo barroco e fescenino e os que ouviram Pedro Calmon, barroco, também, mas não licencioso – os que ouviram essas duas sereias das mesmas águas não precisaram se amarrar para resistirem ao impulso de seguir o líder da ralé e o líder da elite nas universidades e academias. Pedro Calmon tinha três tribunas prediletas: a desta Academia, a do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. A tribuna do poeta era a taverna, a rua. Ele, que não tinha um “gato pingado pra puxar pelo rabo”, gostava de gatos? O gato de Pedro Calmon chamava-se Reinaldo. Gregório de Mattos e o seu destino obscuro “naquela pobre Bahia fidalga, no ano do Senhor de 1684”. Pedro Calmon e o seu destino glorioso.
Mas, afinal, o que queriam esses dois sonhadores, a verdade? A verdade. Usando e abusando do poder da palavra (o terrível poder da palavra!), sondaram, analisaram e interpretaram essa verdade tão escorregadia na face dos reis e dos vagabundos. Dos poetas e dos santos. Qui est veritas?, foi perguntado ao Filho de Deus. Ele não respondeu. E lembro aqui a paixão de ambos por esse mesmo Deus - outro traço comum na natureza mais profunda das duas ovelhas, a branca e a preta, esta a mais carente. A se oferecer nos instantes de lirismo para pousar a cabeça no seio da mulher amada. Ou no Coração do Senhor:
Nesse lance, por ser o derradeiro,Pois vejo a minha vida anoitecer;É, meu Jesus,a hora de se verA brandura de um Pai, mesmo Cordeiro.A beleza deve ser repetida: “Nesse lance, por o derradeiro, / Pois vejo a minha vida anoitecer;”.
Pedro Calmon clareou essa noite quando escreveu sobre A estranha vida de Gregório de Mattos, tantos espantos! Sem dúvida, reconheceu que uma centelha genial lhe abraçou a incrível facilidade do verso.
Não se negue mais, aqui e em Portugal, que é dele o primadodo abrasileiramento da língua portuguesa.Não se negue também que foi Gregório de Mattos, com sua poesia coloquial, o criador da modinha, a famosa modinha brasileira, que ele inventou e divulgou nas suas serenatas em Coimbra. E quando para cá voltou com seu canudo de doutor e sua viola.
Influências de Gôngora e Quevedo? Sim, mas o bardo baiano não aceitava ordens ainda que viessem metamorfoseadas em influências. Foi tentado, chegou a pensar que podia vender a alma ao Diabo, quando aceitou cargos e honrarias com a condição de se calar. Durou pouco o contrato do silêncio, ah!, todo o ouro do mundo não valia a sua liberdade. Jogou longe os aparatos, tirou a viola do saco e voltou às suas sátiras contra a corrupção política, contra o pedantismo e contra a hipocrisia de um reino que nunca respeitou. Orfeu amansava as feras ao som da sua lira. Com sua viola, o poeta atiçava essas feras. Arriscava-se? E muito. Mas viver perigosamente era a sua destinação.
E o poeta sem princípios tinha princípios. Os seus princípios. Se amor é transgressão, ele transgrediu à beça em todos os estados civis pelos quais passou, principalmente no estado de casado, ele gostava de se casar. Contudo, num tempo em que os homens de bem escondiam ferozmente seus amores proibidos e os frutos abomináveis desses amores, assumiu o chamado “caso escabroso”. Lá está, nos assentos da freguesia de São João da Pedreira, a confissão da paternidade: “Aos dezoito de julho de mil seiscentos e setenta e quatro batizei a Francisca, filha de Gregório de Mattos e Guerra, casado, e de Lourença Francisca, solteira.”
Sem querer exagerar na relação das coincidências (o ficcionista é um exagerado), gostaria de lembrar mais um elo de coincidência e que implica uma razão como chave da corrente: eu era estudante na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (“paulista sou, há quatrocentos anos”) quando um colega me ofereceu um livro: Poesias de Gregório de Mattos. Sentei-me sob as arcadas. Abri o livro. Então o bedel veio me perguntar se à noite eu não viria assistir à conferência do Professor Pedro Calmon.
Os jovens desconfiam sempre das celebridades de outra geração, mas eu estava em disponibilidade e esse era um programa. Confesso que entrei na sala meio hesitante, levando comigo as poesias da manhã, uma garantia na hipótese de me sentar na frente e não poder fugir. O tema da conferência era Castro Alves. Entrei desconfiada e saí fascinada. O público ainda aplaudia de pé quando pensei em felicitar o orador de sorriso franco e olhos largos, brilhantes. Não fui, havia gente demais em redor dele. Mas enviei-lhe o meu primeiro livro de contos com uma dedicatória emocionada. Dias depois, recebi o seu cartão que me deixou radiante, mostrei-o aos colegas. Só mais tarde fiquei conhecendo alguns títulos da sua vastíssima obra tão severa, tão brilhante. Destaco as biografias de Castro Alves e de Dom Pedro II. E esse admirável ensaio, Idéias políticas do Brasil. Alguns livros eu amo. Outros, apenas admiro. Eis um livro que amei e admirei.
Araripe Júnior, crítico literário e ensaísta, foi o criador desta cadeira de veludo azul. “O veludo da cadeira azulou como azularam os cabelos” - ouço Gregório de Mattos soprar com seu risinho irreverente.
Ralho com ele e retorno à figura do ensaísta com sua vontade de renovação – mas não é estranho? Araripe Júnior, de aparência tão convencional (as aparências!) e não se sujeitando ao convencional gosto literário da época: ele ousava. Buscava a aventura de novas linguagens e, nessa busca, voltou-se como um girassol deslumbrado para autores como Ibsen, Edgar Poe e... Gregório de Mattos.
Félix Pacheco vem em seguida. Como o seu antecessor, tem o ar ajuizado da laboriosa formiga da fábula, mas gostava mesmo era de ouvir as cigarras. Foi poeta na primeira juventude. O pai queria que ele seguisse a carreira militar; rebelou-se e foi ser jornalista no Jornal do Commercio, onde começou como simples repórter policial e chegou a diretor. Foi também deputado e chanceler da República. Fala tanto nas antigas ilusões, nos sonhos, acredita mesmo que o homem pode se salvar através do sonho - ainda a inquietação do poeta de colete rigorosamente abotoado. Com a emoção arrebentando os botões em suas bizarras paixões literárias: tinha para escolher toda a bem-comportada galeria dos poetas parnasianos, mas quem ele foi buscar? Baudelaire, Rimbaud e Cruz e Sousa, o negro simbolista dos escarros e vísceras. E Gregório de Mattos, naturalmente, o bem-amado dos ocupantes desta Cadeira. Félix Pacheco era feliz? Não sei. Sei que teve a coragem de assumir, já na maturidade, a sua condição de poeta, ele que passara a vida aspirando o buquê perverso das ambigüidades do mal e das ambigüidades do bem. Amava os gatos.
Imaginai agora uma reunião na linha dos malditos, dos raros. Daqueles que, pelos caminhos mais inesperados, escolhem a ruptura. Fora do tempo e ocupando o mesmo espaço, estão todos numa sala, é noite. Os gênios ignorados num País de memória curta, que parece preferir os mitos estrangeiros como se estivéssemos ainda no século XVII, sob o cativeiro do reino. Os mitos estrangeiros que continuam nos vampirizando, já estamos quase esvaídos e ainda oferecemos a jugular no nosso melhor inglês, “o vosso amor é uma honra para mim!”. Pois, imaginai essa reunião com gente aqui da terra: abraçado à sua viola, num canto de sombra está Gregório de Mattos, ouvindo embevecido o piano de Villa-Lobos. Ao lado, um homem pequeno (o Aleijadinho?) diz qualquer coisa que faz Guimarães Rosa rir seu riso luminoso. Tarsila desenha em silêncio, observada por Oswald de Andrade, que gesticula e fala, enquanto Cruz e Sousa se aproxima de Castro Alves, que conversa com Glauber Rocha em tom de conspiração. Vislumbro o perfil de Brecheret. Corre o vinho. Há mais convidados, sim, mas os vultos se esgueiram e se confundem em meio da fumaça penumbrosa dos charutos. Lima Barreto, o moderador da mesa, tira a palheta e começa a falar mas ninguém presta atenção, reina a indisciplina:
É raro encontrar homens assim - diz ele -, mas os há e, quando se os encontra, mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da raça.
Pedro Calmon está atento para registrar e interpretar a contraditória História, matéria para a eternidade. Chama Mário de Andrade e aponta, na vidraça da janela, dois olhos verdes que espiam enviesados. Mário abre a porta e o sorriso. O convite é à maneira bandeiriana: “Entra, Clarice, a casa é sua, você não precisa pedir licença...”
Senhores Acadêmicos, Senhora Acadêmica,
Comecei por narrar as minhas perplexidades naquele modesto laboratório de química da minha adolescência. Das imprevistas misturas, com suas explosões, passei para o imprevisível homem, com sua circunstância, e, assim, nesse mundo fantástico e surrealista, juntei num forte nó as pontas extremas do fio da baianidade: Gregório de Mattos e Pedro Calmon. O herói e o anti-herói. “A disparidade dos seres é acidental”, ensinou Aristóteles. “A unidade dos seres, essa é essencial”. Tudo somado, chegamos às tais “misteriosas combinações” tão do agrado de Dom Pedro I, desde que nelas estaria incluído o seu amor pela marquesa.
Senhores Acadêmicos, Senhora Acadêmica,
Antes de a Academia Francesa de Letras, que foi nosso modelo, receber Marquerite Yourcenar, esta Academia Brasileira de Letras teve o beau geste de abrir suas portas para Rachel de Queiroz. Em seguida, para Dinah.
“Não quero um trono - diria também Rachel de Queiroz. - Quero apenas esta Cadeira.”
A mesma paixão que nos une: a paixão da palavra. A mesma luta tecida na solidão e na solidariedade para cumprir o duro ofício nesta sociedade violenta, de pura autodestruição. E neste tempo que está mais para Gregório de Matos do que para Pedro Calmon - ah! quanta matéria para a inspiração do trovador com sua viola demolidora. Um tempo que marca a plenitude da sátira, da charge política: a salvação através do humor. Com esse humor incandescente, ele iria se empenhar de novo na denúncia dos males que desde o século XVII já afligiam o País, centralizados na política com seus demônios crônicos na delirante corrida pelo poder: o demônio da Gula (leia-se voracidade), o demônio da Vaidade e o demônio da Soberba. O burocrático demônio da Preguiça, esse vem se arrastando por último.
O duro ofício de testemunhar um planeta enfermo nesta virada do século. Às vezes, o medo. Quando perseguido, o polvo se fecha nos tentáculos e solta ma tinta negra para que a água em redor fique turva e, assim, camuflado, ele possa então fugir. A negra tinta o medo. Viscosa, morna. Mas o escritor precisa se ver e ver o próximo na transparência da água. Tem de vencer o medo para escrever esse medo. E resgatar a palavra através do amor, a palavra que permanece como a negação da morte.
Às vezes, a esperança. O homem vai sobreviver, e essa certeza me vem quando vejo o mar, um mar que talhou com tanta poluição, embora!, mas resistindo. Contemplo as montanhas e fico maravilhada porque elas ainda estão vivas. Sei que é preciso apostar, e de aposta em aposta cheguei a esta Casa para a harmoniosa convivência com aqueles que apostam na palavra. Sei ainda que estou feliz nesta noite: vejo minha família - meu filho Godoffredo Telles Neto deve estar por aí me filmando, é cineasta. E vejo os meus amigos. Esses amigos que me acompanham e me iluminam.
"Somos imortais porque não temos onde cair mortos"
Lygia Fagundes Telles
AS HORAS NUAS
Ando na cama revolvida. Do alto dos travesseiros posso ver melhor o seu perfil. Que resiste como nas medalhas. Mas sem os banhos de sol, sem as massagens e duchas a pele se ressentiu, parece mais flácida. Baça. Cresce seu horror pela claridade, pela rua. Tanta violência lá fora!, respondeu à filha. E depois, sair com quem? Os amigos foram se afastando à medida que sua estrela começou a ficar cinzenta. Restou a Lili que chega de repente toda enfeitada e quer arrastá-la a um restaurante. A um cinema. Ao teatro, nem pensar, já avisou aos que ainda fazem convites, Nunca mais piso num teatro.
- Mãezinha querida, você disse que ia almoçar comigo e não foi, queixou-se Cordélia.
- Hoje não acordei brilhante. A Diú leu o horóscopo, tem aí uma conjuntura de astros que é um horror.
Cordélia foi apanhar o cinzeiro. Transita descalça pelos dois apartamentos com sua leve bata oriental e com a graça de quem acabou de sair do banho, é mais bonita de cara lavada. usa uns vestidinhos soltos, no estilo de uma túnica romana. Quando aparece assim - as coincidências! - lá das lonjuras me vem a imagem de uma jovem de túnica me olhando na alcova, minha mulher? Esqueça. Mãe e filha juntas. O diálogo breve. As visitas breves.
- Vinte e oito anos, Cordélia?
- Trinta, mãezinha, trinta.
- Aparenta dezoito, querida. Diminuo sempre a minha idade e a dos outros, essa mania de idade, hem?! Tirante o médico, alguém ousou algum dia perguntar à mamãe, Quantos anos, minha senhora? A gente agora dá um espirro e já vem a caneta, o microfone, o gravador. Sua idade? Enfim, os jogos já estão feitos, não importa mais.
quinta-feira, 21 de agosto de 2008
TERTÚLIA
Tiago Novaes
Acho que as fotos falam por si. Foi mágico. Foi lindo. Lygia falando sobre Machado de Assis. Carlinha, Cida, Nice....todas em estado de choque.
No final, Cida presenteia Lygia e Carlinha marca presença divulgando nossa comunidade.
Como sempre, a delicadeza da grande dama, em atender a todos, apesar de muito cansada, nenhuma palavra áspera, somente gentilezas com seus queridos leitores.
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
Seminário dos Ratos
- Que é que você está fazendo aí? - perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?"
"Duas vezes apertou minha mão, eu preciso de você, disse. Mas logo em seguida já não precisava mais, e esse medo virava indiferença, quase desprezo, com um certo traço torpe engrossando o lábio. Voltava a ser adolescente quando ria, a melhor da nossa classe, sem mistérios. Sem perigo. Fora belíssima e ainda continuava mas sua beleza corrompida agora era triste até na alegria. Contou-me que se separou do quinto marido e vivia com um pequeno tigre num apartamento de cobertura."
*
"Assim a mentira, folha cadente que podia parecer tão brilhante mas de vida breve. Quando o mentiroso olhava para trás, via no final de tudo uma árvore nua. Seca. Mas o verdadeiro, esse teria uma árvore farfalhante, cheia de passarinhos - e abriu as mãos para imitar o bater de folhas e asas. Fechei as minhas. Fechei a boca em brasa agora que os tocos das unhas (já crescidas) eram tentação e punição maior. Podia dizer-lhe que justamente por me achar assim apagada é que precisava me cobrir de mentira como se veste um manto fulgurante. Dizer-lhe que diante dele, mais do que diante dos outros, tinha de inventar e fantasiar para obrigá-lo a se demorar em mim como se demorava agora na verbena será que não percebia essa coisa tão simples?"
*
"Afrouxo o colarinho. Ser simpático é retribuir-lhe o sorriso de Tóquio, é fácil ser simpático. E difícil, já começa a ficar bastante difícil, a simpatia satura mais depressa: um simpático pintor da moda. Não da primeira linha, mas a burguesia média em ascensão pensa que é da primeira e compra o que eu assinar. Mas enriqueci, não enriqueci? Não era isso o que eu queria, merda! Então, não se queixe, tudo bem, qual é o problema?! Vou seguindo submisso o avental branco, em lugares como este fico de uma submissão absoluta."
(...)
"A Rosa, não era virgem? Um ponto que a impressionou foi esse, o fato de uma moça com mais de vinte anos, independente, com cursos e ainda virgem. Lembrei-lhe que naquele tempo usava as moças pobres se guardarem, as ricas podiam ter seus amiguinhos e se casar sem problemas, mas Rosa Preconceituosa era da pequena burguesia."
*
"Disse que era a princesa do baile, riu quando negou ter ligado outras vezes e convidou-o pra ver um filme nacional muito interessante que estava passando ali mesmo, perto da oficina dele, na São João. O silêncio do outro lado foi tão profundo que o Rôni deu-lhe depressa uma segunda dose, Beba, meu bem, que você está quase desmaiando. Acho que caiu a linha, ela sussurrou, apoiando-se na mesa, meio tonta."
*
"A chuva mansa e o céu de aço. Na mesa do Doutor Werebe, o relógio branco marca três horas, três horas em ponto. Cheguei há pouco e a enfermeira pediu que esperasse. Então, como vão as coisas?, ele vai perguntar enquanto acende o cigarro. Como vai minha irmã?, pergunto eu. O silêncio ajuda a abrir o intrincado caminho aqui dentro por onde vou descendo até o fundo, para ajudá-la preciso eu também descer aos infernos. E no terceiro dia ressuscitar dos mortos, rezo muito, mas não aos santos limpos, rezo aos outros, aqueles rasgados por espinhos, por demônios."
*
"Não vai é me fazer um ensopado com seu coração, não vai?
- Meu coração é de i sopor e isopor não dá nenhum ensopado. Li uma vez que - ele acrescentou. Puxou-a com brandura: - Vem, Ana. Ali tem um banco.
- Meu coração é de verdade. Ele riu.
- O seu? Isopor ou acrílico, na história que li o homem achou que tinha tanto sofrimento em redor, mas tanto, que não agüentou e substituiu seu coração por um de acrílico, acho que era acrílico."
(...)
"- Tenho ódio de Amsterdã. Eu era tão perfumada, tão limpa. o Me sujei com você.
- Nos sujamos quando acabou o amor. Agora, vem, vamos
dormir naquele banco. Vem, Ana. Ela puxou-lhe a barba.
- Quando foi que fiquei assim imunda, fala!
- Mas eu já disse, foi quando deixou de me amar.
- Mas você também - ela soqueou-lhe fracamente o peito.
- Nega que você também... - Sim, nós dois. A queda dos anjos, não tem um livro? Ah, que diferença faz. Vem."
*
"Mas era preciso falar? Era mesmo preciso? Ficamos nos olhando e meu pensamento era agora um fluxo que passava das minhas mãos para as suas, estávamos de mãos dadas: sim, eu era ciumenta, insegura, quis me afirmar e tudo foi só decepção, sofrimento. Tinha o Rodrigo (meu Deus, o Rodrigo!) que era omeu querido amor, um amor tumultuado, só imprevisão, só loucura, mas amor. E achei que seria a oportunidade de me livrar dele, a troca era vantajosa, mas calculei mal, logo nos primeiros encontros descobri que a traição faz apodrecer o amor."
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"Que século, meu Deus! - exclamaram os Ratos e começaram a roer o edifício. "
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
A estrutura da bolha de sabão
No escuro eu sentia essa paixão contornando sutilíssima meu corpo. Estou me espiritualizando, eu disse e ele riu fazendo fremir os dedos-asas, a mão distendida imitando libélula na superfície da água mas sem se comprometer com o fundo, divagações à flor da pele, ô! amor de ritual sem Sangue. Sem grito. Amor de transparências e membranas, condenado à ruptura.
— Precisava.
— Cadela. Já viu sua cara no espelho, já viu?
A moça encostou-se no batente da porta. Abriu a bolsa e tirou o cigarro. Acendeu-o. Quebrou o palito e ficou mascando a ponta.
— Acabou, mãe? Quero dormir.
A mulher aproximou mais a cadeira. Fechou no peito cavado a gola do casaco. Falou em voz baixa, com suavidade.
— Na véspera do casamento. Na vés-pe-ra. Você já viu sua cara no espelho? Já se olhou num espelho''— E daí? O véu vai cobrir minha cara, o véu cobre tudo, ih! tem véu à beça Vou dar uma beleza de noiva, mãe, você vai ver. Preferia me meter no meu colante preto mas seu genro é romântico, aquelas ondas...
— Com ele quem?
— Com esse vagabundo que acabou de te deixar no portão.
— Porque ele não quer, ora.
— Ah, porque ele não quer — repetiu a mulher. Parecia triunfante. — Gostei da sua franqueza, porque ele não quer. Ninguém quer, minha querida. Você já teve dúzias de homens e nenhum quis, só mesmo esse inocente do seu noivo...
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Verão no aquário
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