terça-feira, 19 de agosto de 2008

Verão no aquário


" quando na realidade o amor é uma coisa tão simples... Veja-o como uma flor que nasce e morre em seguida por que tem que morrer. Nada de querer guardar a flor dentro de um livro, não existe nada mais triste no mundo do que fingir que a vida onde a vida onde a vida acabou."

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"A verdade me varava da cabeça aos pés, como um raio. E me partira ao meio: na metade viva, sentira um formigamento de formigas vermelhas correndo na alegria carnívora da descoberta. A outra parte estava enegrecida, morta. "

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Revolvi papéis e livros da minha mesa. Abri gavetas. Por onde andariam meus retratos? Era preciso mostrá-los a André, ele precisava me ver menina, nem o inimigo resiste ao retrato da infância. Ele tinha que me conhecer com aquela perplexidade, com aquela inconciência diante do futuro escondido dentro da máquina fotográfica. Vi um retrato assim do meu pai: um menino débil e louro na sua roupa de marinheiro, a mão direita pousada na mesinha com uma toalha de franja e um vaso de flores em cima, a mão esquerda na cintura, os dedos graciosamente imobilizados pelo fotógrafo, "vamos, olhe nesta direção!..." O olhar ainda limpo do rancor pela bem-amada que havia de traí-lo um dia, pela mãe falhando no momento em que não podia falhar, pelo amigo que não era amigo, por Deus que não aparecia para salva-lo quando ele próprio se erguesse para ferir o próximo assim como foi ferido também. Os ídolos ainda estão inteiros. O menino então sorri e nem o inimigo mais feroz resistirá a esse sorriso de quem se oferece tão sem defesa. André poderia se comover com o meu retrato de menina.

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"A busca, a conquista, a posse rápida e total na ânsia de enraizar o amor, que de repente não é mais amor, é lúxuria, lúxuria que de repente não é luxuria, é farsa. Farsa que é medo, simplesmente medo da solidão, mais difícil de suportar que o peso do corpo alheio a se abater sobre o meu..."

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__Você não tocava isso ? perguntou ele fazendo girar o dedo dentro do copo.Ele falava no passado, tocava. Era como se tudo tivesse mesmo acabado. E não estava ? Pensei em miss Gray inclinada sobre o teclado, sem poder desviar o olhar das minhas mãos que tocavam com uma precisão que estarrecia. Era para mim um mistério ve-las assim tão poderosas, livres como se tivessem sido decepadas. "Admiravel, Raiza, admirável!" exclamava miss Gray com a voz trêmula. E eu tremia também e proceguia tocando, tocando e sentindo no rosto as lágrimas correrem misturadas ao suor. deslumbrava-me o fato de não poder controlar meus dedos que se moviam como por efeito de um sortilégio. O orgulho me atordoou, embora no fundo do coração não visse mérito algum em tocar com aquelas mãos que não me pertenciam. Quando foi que ficaram sendo minhas? Não sei. Sei que um dia, derrepente as encontrei sem talento. Abri o piano, mil vezes abri o piano na esperança de repetir o milagre. E não aconteceu mais nada. Agora elas apenas executavam ordens, prisioneiras, mais medrosas do que ratos se debatendo na armadilha dos pulsos. Miss Gray não se conformava com a transformação, "mas não é possível, que é que essa menina tem?!" E procurou ser paciente, à espera de que a crise passasse. Depois exasperou-se, tão perplexa quanto os outros. Só minha mãe não se surpreendeu, "passou como passou a adolescência", ouvi-a certa tarde dizer a miss Gray que se confessava derrotada. Contudo, não se opôs a que eu contratasse Goldenberg, "é um excelente professor", disse apenas. E esperou, era horrível sabe-la esperando que Goldenberg se fosse também.
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"Tombei de joelhos em meio de um desfalecimento. Onde estaria a saída?! Alguém levantou-me por detrás. As mãos eram delicadas, tão delicadas que estremeci. Voltei-me. Um homem com cabeça de urso estendia-me os braços, 'fica comigo!' A voz era triste como os olhos lá no fundo dos buracos de papelão envernizado. O focinho ria numa alegria alvar mas esse era um riso desmentido pelos olhos que imploravam, 'fica comigo!...' Recuei. A enorme cabeça oscilava como a de um animal decapitado. Lembrei-me da história da fera de olhos pungentes, bastava beijá-la e ela se transformaria num príncipe. Sim, seria fácil amá-lo com aqueles seus olhos humanos. Mas quem daria o beijo em mim, quem?"
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"Abri a mão em cima da gravura que eu pregara com tachas na parede. Havia uma rosa de Van Gogh que tinha a mesma cor da minha mão. Rosas num pote verde. Tão inocentes, não? Contudo, bastava um olhar mais demoradamente pata surgir a primeira dúvida: eram rosas vermelhas? Brancas? Amarelas? Todas as cores se empastavam nas pétalas intumescidas e que desabrochavam em labirintos escalavrados pelo pincel na ânsia de encontrar uma saída. Em vão ele abrira talhos profundos na massa espessa das corolas, rodando pelos caminhos como um viajante perdido na mata. Havia esperança? A resposta vinha do sangue que as pétalas gretadas iam vertendo: enquanto houver desespero, diziam elas, haverá luta. E na luta está a salvação."

2 comentários:

Anônimo disse...

Denso, perturbador... meu preferido!

"- Não se esqueça que eles vivem apenas num palmo de água quando há um mar lá fora.
- Mas no mar seriam devorados por um peixe maior, mãezinha.
- Mas pelo menos lutariam. E nessa aquário não há luta, filha. Nesse aquário não há vida"

Pela libertação das vidas em aquários :)

Texto e cultura disse...

Maravilhoso.
Verão no aquário é um romance inigualavel.