sexta-feira, 22 de agosto de 2008

AS HORAS NUAS

Capa da edição dinamarquesa de
As horas nuas, 1991

Tenho um nome de gente na minha condição de gato. Mas antes, quando eu era gente? Aquele é o menino da casa das venezianas verdes, alguém me apontou. Vou andando e olhando o carpete branco-azulado, será que ela vomitou? Há cinza de cigarro, peças de roupa, um copo tombado, manchado de vinho mas nenhum sinal de vômito. E o cheiro pairando no ar. Espantoso o laboratório que não descansa, o vinho perfumado acaba de descer e já começa a fermentação, tudo se transforma rapidamente na química humana. Para pior.
Ando na cama revolvida. Do alto dos travesseiros posso ver melhor o seu perfil. Que resiste como nas medalhas. Mas sem os banhos de sol, sem as massagens e duchas a pele se ressentiu, parece mais flácida. Baça. Cresce seu horror pela claridade, pela rua. Tanta violência lá fora!, respondeu à filha. E depois, sair com quem? Os amigos foram se afastando à medida que sua estrela começou a ficar cinzenta. Restou a Lili que chega de repente toda enfeitada e quer arrastá-la a um restaurante. A um cinema. Ao teatro, nem pensar, já avisou aos que ainda fazem convites, Nunca mais piso num teatro.
- Mãezinha querida, você disse que ia almoçar comigo e não foi, queixou-se Cordélia.
- Hoje não acordei brilhante. A Diú leu o horóscopo, tem aí uma conjuntura de astros que é um horror.
Cordélia foi apanhar o cinzeiro. Transita descalça pelos dois apartamentos com sua leve bata oriental e com a graça de quem acabou de sair do banho, é mais bonita de cara lavada. usa uns vestidinhos soltos, no estilo de uma túnica romana. Quando aparece assim - as coincidências! - lá das lonjuras me vem a imagem de uma jovem de túnica me olhando na alcova, minha mulher? Esqueça. Mãe e filha juntas. O diálogo breve. As visitas breves.
- Vinte e oito anos, Cordélia?
- Trinta, mãezinha, trinta.
- Aparenta dezoito, querida. Diminuo sempre a minha idade e a dos outros, essa mania de idade, hem?! Tirante o médico, alguém ousou algum dia perguntar à mamãe, Quantos anos, minha senhora? A gente agora dá um espirro e já vem a caneta, o microfone, o gravador. Sua idade? Enfim, os jogos já estão feitos, não importa mais.

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