“Ouça, querida – disse-lhe Otávia certa vez – não fique assim com essa mentalidade de donzela folhetinesca, não separe com tanta precisão os heróis dos vilões, cada qual de um lado, tudo muito bonitinho como nas experiências de química. Não há gente completamente boa nem gente completamente má, está tudo misturado e a separação é impossível. O mal está no próprio gênero humano, ninguém presta. Às vezes a gente melhora. Mas passa ... E que interessa o castigo ou o prêmio? ... Tudo muda tanto que a pessoa que pecou na véspera já não é a mesma a ser punida no dia seguinte.”
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"-Coitadinha...-lamentou Otávia enchendo novamente a colher. Delicadamente introduziu-a na boca da criança.- Vocês já imaginaram a maravilha que seria o mundo se ao menos uma quinta parte desses gênios se realizassem na maioridade? Há milênios que os pais se debruçam como fadas sobre os berços e fazem profecias fabulosas. E há milênios a Terra prossegue corroída pelo germe humano, que é sempre tão vulgar e medíocre quanto o da geração anterior. Está claro que a gente concorda sempre com os prognósticos sobre os infantes - acrescentou passando o guardanapo no queixo da menina. Deu uma risadinha. - Mas é por gentileza, não é, nenê?"
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"E então, já descobriu muita coisa? – Seu tom de voz agora era sombrio, com um timbre de desafio. – Por exemplo, que é que você sabe de nós? Que Letícia gosta de mulher?Que Bruna tem um amante? Que Afonso é um pobre-diabo? Que Conrado é virgem?Que eu... Há mais coisas ainda, querida. Mas não, não fique agora pensando quesomos uns monstros, não vá querer descobrir crimes, não há cadáveres dentro denenhuma arca. Apenas há mais coisas ainda. E não adianta ficar aí escarafunchando,que essas você nunca descobrirá. Coisas..."
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"O mal maior foi não estar nunca presente, não ver de perto as coisas que assim de longe se fantasiavam como num sortilégio. Teria visto tudo com simplicidade, sem sofrimento. Mas mil vezes se desdobrara em duas para deixar que uma das menininhas corresse por ali enquanto a outra roía as unhas, rondando na ponta dos pés o quarto da doente. E aquela que fugia, voltava depois contando coisas extraordinárias... (...) Os semideuses eram apenas cinco criaturas dolorosamente humanas. "
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