quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Seminário dos Ratos

(capa da edição russa)
"No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
- Que é que você está fazendo aí? - perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?"
*

"Duas vezes apertou minha mão, eu preciso de você, disse. Mas logo em seguida já não precisava mais, e esse medo virava indiferença, quase desprezo, com um certo traço torpe engrossando o lábio. Voltava a ser adolescente quando ria, a melhor da nossa classe, sem mistérios. Sem perigo. Fora belíssima e ainda continuava mas sua beleza corrompida agora era triste até na alegria. Contou-me que se separou do quinto marido e vivia com um pequeno tigre num apartamento de cobertura."

*

"Assim a mentira, folha cadente que podia parecer tão brilhante mas de vida breve. Quando o mentiroso olhava para trás, via no final de tudo uma árvore nua. Seca. Mas o verdadeiro, esse teria uma árvore farfalhante, cheia de passarinhos - e abriu as mãos para imitar o bater de folhas e asas. Fechei as minhas. Fechei a boca em brasa agora que os tocos das unhas (já crescidas) eram tentação e punição maior. Podia dizer-lhe que justamente por me achar assim apagada é que precisava me cobrir de mentira como se veste um manto fulgurante. Dizer-lhe que diante dele, mais do que diante dos outros, tinha de inventar e fantasiar para obrigá-lo a se demorar em mim como se demorava agora na verbena será que não percebia essa coisa tão simples?"

*

"Afrouxo o colarinho. Ser simpático é retribuir-lhe o sorriso de Tóquio, é fácil ser simpático. E difícil, já começa a ficar bastante difícil, a simpatia satura mais depressa: um simpático pintor da moda. Não da primeira linha, mas a burguesia média em ascensão pensa que é da primeira e compra o que eu assinar. Mas enriqueci, não enriqueci? Não era isso o que eu queria, merda! Então, não se queixe, tudo bem, qual é o problema?! Vou seguindo submisso o avental branco, em lugares como este fico de uma submissão absoluta."
(...)
"A Rosa, não era virgem? Um ponto que a impressionou foi esse, o fato de uma moça com mais de vinte anos, independente, com cursos e ainda virgem. Lembrei-lhe que naquele tempo usava as moças pobres se guardarem, as ricas podiam ter seus amiguinhos e se casar sem problemas, mas Rosa Preconceituosa era da pequena burguesia."

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"Disse que era a princesa do baile, riu quando negou ter ligado outras vezes e convidou-o pra ver um filme nacional muito interessante que estava passando ali mesmo, perto da oficina dele, na São João. O silêncio do outro lado foi tão profundo que o Rôni deu-lhe depressa uma segunda dose, Beba, meu bem, que você está quase desmaiando. Acho que caiu a linha, ela sussurrou, apoiando-se na mesa, meio tonta."

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"A chuva mansa e o céu de aço. Na mesa do Doutor Werebe, o relógio branco marca três horas, três horas em ponto. Cheguei há pouco e a enfermeira pediu que esperasse. Então, como vão as coisas?, ele vai perguntar enquanto acende o cigarro. Como vai minha irmã?, pergunto eu. O silêncio ajuda a abrir o intrincado caminho aqui dentro por onde vou descendo até o fundo, para ajudá-la preciso eu também descer aos infernos. E no terceiro dia ressuscitar dos mortos, rezo muito, mas não aos santos limpos, rezo aos outros, aqueles rasgados por espinhos, por demônios."

*

"Não vai é me fazer um ensopado com seu coração, não vai?
- Meu coração é de i sopor e isopor não dá nenhum ensopado. Li uma vez que - ele acrescentou. Puxou-a com brandura: - Vem, Ana. Ali tem um banco.
- Meu coração é de verdade. Ele riu.
- O seu? Isopor ou acrílico, na história que li o homem achou que tinha tanto sofrimento em redor, mas tanto, que não agüentou e substituiu seu coração por um de acrílico, acho que era acrílico."

(...)
"- Tenho ódio de Amsterdã. Eu era tão perfumada, tão limpa. o Me sujei com você.
- Nos sujamos quando acabou o amor. Agora, vem, vamos
dormir naquele banco. Vem, Ana. Ela puxou-lhe a barba.
- Quando foi que fiquei assim imunda, fala!
- Mas eu já disse, foi quando deixou de me amar.
- Mas você também - ela soqueou-lhe fracamente o peito.
- Nega que você também... - Sim, nós dois. A queda dos anjos, não tem um livro? Ah, que diferença faz. Vem."

*
"Mas era preciso falar? Era mesmo preciso? Ficamos nos olhando e meu pensamento era agora um fluxo que passava das minhas mãos para as suas, estávamos de mãos dadas: sim, eu era ciumenta, insegura, quis me afirmar e tudo foi só decepção, sofrimento. Tinha o Rodrigo (meu Deus, o Rodrigo!) que era omeu querido amor, um amor tumultuado, só imprevisão, só loucura, mas amor. E achei que seria a oportunidade de me livrar dele, a troca era vantajosa, mas calculei mal, logo nos primeiros encontros descobri que a traição faz apodrecer o amor."

*

"Que século, meu Deus! - exclamaram os Ratos e começaram a roer o edifício. "
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

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