Num dia difícil, em plena ditadura militar, Lygia Fagundes Telles viu um monte de nuvens negras no céu de Brasília. “Aquilo é uma conspiração de nuvens”, disse a escritora. A foto do dia da conspiração, em 1976, você vê aqui, com os rabiscos de Lygia no verso, contando a história do que aconteceu. A frase tão boa ela guardou na memória e agora batiza seu novo livro, recém-lançado pela editora Rocco. Conspiração de Nuvens é muito mais que uma obra sob sua assinatura: é o reencontro de Lygia com a vida depois de um longo período de “deficiência espiritual” em função da perda de seu filho único, Goffredo Telles Neto. “Foi muito bom escrever esse livro, entrei em uma vereda de trabalho”, diz a Grande Dama da literatura brasileira. Lygia vive dias atribulados, repletos de eventos e palestras. Mesmo assim, recebeu com muita disposição a reportagem da Revista da Cultura em seu apartamento nos Jardins, em São Paulo, com a peculiar simpatia e um tanto de timidez inicial, logo superada. Na sala de estar, cortinas fechadas e, sobre a escrivaninha, sua Olivetti italiana, na qual “edita” seus textos, além de diversos álbuns de fotos. Difícil apresentar em poucas linhas sua invejável jornada pessoal e profissional. Ganhou os mais importantes prêmios nacionais — e alguns estrangeiros também —, teve obras publicadas em diversos países e preserva sua conhecida elegância, o humor inteligente e o discurso fluente, sempre repleto de imagens poéticas. Características que marcaram sua imagem pública desde os anos 1950, quando escreveu Ciranda de Pedra. Daí por diante, ela produziu outros três romances, escreveu o roteiro do filme Capitu e publicou oito livros de contos e diversas coletâneas e antologias. Em1985 foi eleita imortal da Academia Brasileira de Letras. “Tenho esperança de que, através da minha palavra oral, escrita, e por minha presença, eu tenha ajudado alguém a se afastar do crime, do vício, da loucura, da solidão”, diz Lygia.
De onde surgiu o título Conspiração de Nuvens?
Ele dá nome a uma das histórias publicadas neste livro, quando descrevo a tentativa de entrega do que ficou conhecido como o Manifesto dos Mil. O ano era 1976, ditadura militar, presidente Ernesto Geisel. Eu estava com meu segundo marido, Paulo Emílio Salles Gomes, na fazenda de Décio Almeida Prado, e recebi um telefonema do Rubem Fonseca. “Tudo está sendo censurado, Lygia, está um horror. Elaboramos um manifesto contra a censura e já temos a assinatura de mil intelectuais. Você precisa fazer parte do grupo que vai levá-lo para o ministro da Justiça, o Armando Falcão”. Fomos eu, a escritora Nélida Piñon, o historiador Hélio Silva e o jornalista Jefferson Ribeiro de Andrade. Tomamos um avião a partir do Rio de Janeiro. E lá estávamos quando, de repente, surgiu um monte de nuvens negras à frente. Sussurrei para o Hélio Silva: “Aquilo é uma conspiração de nuvens”. E ele: “Sim, nuvens também conspiram. E se não cairmos agora, vamos ser presos em Brasília”. O tempo se abriu, mas a expressão ficou na minha cabeça.
Vocês entregaram o manifesto?
Não (risos). Armando Falcão não nos recebeu. Mas a imprensa sim, foi uma beleza. Naquela época, tinham tirado das livrarias o Feliz Ano Novo, do Rubem Fonseca, alegando que incentivava a violência, o Araceli, Meu Amor, do José Louzeiro, que, diziam, estimulava a sem-vergonhice, e outros. Um jornalista veio conversar comigo, quis saber se haviam recolhido o meu romance As Meninas, no qual incluí o texto de um jovem descrevendo a tortura que sofreu nas mãos do DOI-CODI. Contei que não: segundo disseram a Paulo Emílio, esta parte está na página cento e pouco do livro. O censor chegou até a 74, achou tudo muito chato e não foi adiante (risos).
Você diria que As Meninas é seu livro predileto?
Dentro do romance, sim, porque é um livro bastante real, no qual pego forte na realidade brasileira. Lá está uma drogada, e o Brasil já estava no meio das drogas, uma baiana subversiva e uma jovem burguesinha que milagrosamente se torna tão forte. Fiquei feliz porque, à minha maneira, consegui trazer para o romance o meu país, este Brasil de terceiro mundo, de analfabetos e de miseráveis. Mas também gosto do Ciranda de Pedra, publicado em 1954, que marcou, na minha opinião e na dos críticos também, a minha maturidade intelectual. Gosto também do As Horas Nuas, que tem uma personagem muito forte e muito louca, a Rosana. E, de um modo mais envolvido e difícil, gosto do Verão no Aquário, um livro em que os peixes menores são engolidos pelos maiores, como na vida.
E os livros de contos?
Entre os de contos, prefiro A Noite Escura e Mais Eu. Meu filho, Goffredo, adorava o Disciplina do Amor, um livro de fragmentos. Já o Conspiração de Nuvens, que traz textos baseados em histórias reais, foi especialmente importante para mim. Depois que meu filho morreu, há pouco mais de um ano, fiquei moída como a cana passada pelo triturador.
Como lidou com essa perda?
Fiquei assim, um bagaço, quase morri junto. Ele era muito jovem, homem lindo, inteligentíssimo. Tinha hérnia de disco, uma doença horrível, e havia duas doutrinas: uma que dizia para operar, outra que dizia para não operar. Ele seguiu a primeira, fez duas operações sem sucesso, na terceira morreu do coração. Foi muito bom escrever o Conspiração, pois entrei em uma vereda de trabalho. E pude encontrar novamente, por meio do meu ofício, a minha vida, que estava completamente destruída. É mesmo verdade que a arte é a negação da morte. Através da arte você consegue não negar a morte propriamente, mas consegue, como um cavaleiro, pular o obstáculo – este, enorme – e continuar. Existe a deficiência física, mas, de certo modo, espiritualmente também há uma deficiência em relação à morte. Eu tinha mãos, pernas e cabeça funcionando, mas sofria de uma deficiência espiritual profunda. Tenho vários sangues no caldeirão da minha raça – italiano, espanhol, português. Talvez essa mistura tenha me empurrado para a frente. Uma dor forte como eu tive é uma deficiência.
Há algum leitor privilegiado que lê suas obras antes de serem enviadas ao editor?
Não. Vou escrevendo e enviando para a editora, meus textos nunca sofreram nenhuma interferência. Sou totalmente livre.
Seu pai era advogado, sua mãe era pianista e dona de casa. De onde surgiu sua veia literária? Meu nome de solteira é Lygia de Azevedo Fagundes. Segundo um primo meu, o Menezes, em nossa árvore genealógica estão os escritores Fagundes Varella e Álvares de Azevedo. Pode ter vindo daí. Sei que me apaixonei pelo ofício e aqui estou, curtindo até hoje. Mas sobrevive-se muito mal da literatura. Os editores estão muito ricos, os livreiros eu não sei, os escritores não. Aqui, com raras exceções, os autores não sobrevivem da produção literária. E, na minha juventude, ainda tive que enfrentar o preconceito de sexo – fui uma das primeiras mulheres a se formar em Direito.
Seu pai era advogado, sua mãe era pianista e dona de casa. De onde surgiu sua veia literária? Meu nome de solteira é Lygia de Azevedo Fagundes. Segundo um primo meu, o Menezes, em nossa árvore genealógica estão os escritores Fagundes Varella e Álvares de Azevedo. Pode ter vindo daí. Sei que me apaixonei pelo ofício e aqui estou, curtindo até hoje. Mas sobrevive-se muito mal da literatura. Os editores estão muito ricos, os livreiros eu não sei, os escritores não. Aqui, com raras exceções, os autores não sobrevivem da produção literária. E, na minha juventude, ainda tive que enfrentar o preconceito de sexo – fui uma das primeiras mulheres a se formar em Direito.
Como era ser mulher nesse ambiente?
Na minha sala, eram 200 rapazes para seis moças. Lá me perguntaram: você está aqui para casar? E eu respondi: também! (risos) Éramos todas virgens, não havia esta coisa, era tudo muito recatado, meninas saindo das fraldas. Perguntaram certa vez por que a literatura é tão pobre em mulheres. Ora, porque elas só aprendiam a escrever quando moças! Naquela época, a mulher no Brasil tocava cravo, depois piano, todas donzelas. O futuro único era casamento. Para mim, o que fez com que as mulheres entrassem no mercado de trabalho foi a Segunda Guerra Mundial, quando os homens foram para o front e elas começaram a entrar nas fábricas, nos escritórios e nas universidades, ocupando o lugar dos homens. Mulher só fazia goiabada. Minha mãe só fazia goiabada – mas era uma excelente pianista. No tempo da mamãe, eram chamadas de mulheres-goiabada.
E as mulheres nos dias de hoje?
Está havendo no Brasil uma coisa que me desgosta muito: uma superficialidade incrível, com raras exceções. A mulher está tola, ligada a bobagens, coisas de vitrines e lantejoulas, muito trabalhada na vulgaridade. É mostrar o peito, o traseiro. Agora está na moda ficar de barriga de fora. Outro dia, vi uma mulher da minha idade com um decote até o rabo e uma tatuagem nas costas. Tive vontade de dizer: “Senhora, cubra suas costas, que são muito feias. E sua tatuagem é muito feia também” (risos). Mas não estou na igreja-geral-de-não-sei-o-quê, não saio por aí dizendo coisas. Primeiro, era moda ser modelo. As meninas de 12 anos, todas anoréxicas, para poder desfilar. Agora, é moda ser prostituta. Mas vai passar, vai passar (risos).
Você aderiu ao computador?
Bom, neste último livro tive ajuda para passar tudo para o conspirador... opa, computador (risos). Não gosto, mas vou aprender. Gosto mesmo é da minha Olivetti. Na verdade, primeiro escrevo à mão, passo a limpo na Olivetti e já vou cortando, acrescentando. Depois alguém coloca no computador. Meu filho fez um documentário comigo, o Narrarte, ele era um ótimo cineasta. Lá se vê que eu usava muito durex, ia recortando e colando os trechos. Adoro isso.
O que surge primeiro na sua produção: o personagem, o enredo...?
Não tem ordem, não há estatística. Às vezes, o personagem aparece antes, ou o enredo, ou a idéia. Há uma coisa curiosa: às vezes eu volto ao mesmo personagem. Como se ele me pegasse pela manga e dissesse: olha, não fui bem aproveitado.
O que você acha da expansão das grandes livrarias?
Importantíssima – quanto mais livrarias melhor. A nova livraria da Cultura é uma coisa extraordinária. Na minha infância, havia uma barraca nos parques de diversão chamada “pesca maravilhosa”. A pessoa lançava o anzol e nós, atrás de uma tela, amarrávamos um presentinho nele: um biscoito, caixinha de fósforos... Pedro Herz está fazendo isso: vem o comprador, joga a isca, vem o livro. Uma forma de alimentar um povo que está precisando muito de leitura, as crianças, os jovens. Eles podem ir às baladas, porém têm que ir à leitura também. Buscar na palavra escrita o caminho, a ajuda na profissão, na escolha do ofício, na vocação e na vida. Na Cultura há coisas sedutoras: um café, um restaurante... Aquele que está na rua vê, entra e, de repente, compra um livro. É a pesca maravilhosa da minha infância.
Você tem seus autores preferidos?
Na minha juventude, li muito Dostoievsky e Kafka, e também os franceses, Flaubert, Balzac, Baudelaire, Rimbaud. O fato de ter entrado na Academia Brasileira de Letras facilitou minha vida, pois recebo muitos livros. Aliás, a ABL está muito bem organizada, pois o presidente Marcos Vilaça é muito bom. Está abrindo as portas, tornando-a mais acessível, o que é preciso em um país como o nosso.
Para finalizar, Cultura é...
O pão nosso de cada dia. É nosso alimento, para podermos viver em um país com esperança na nossa língua, tão bela, com estilo, com modo, forma brasileira. É a água da qual bebemos.
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