Entrevista com Lygia Fagundes Telles por Ronaldo Bressane
Ela já tem coragem de saber que é imortal, como cantaria Caetano. Talvez por isso não decline a idade. Uma rara vaidade a que se permite Lygia Fagundes Telles, das mais importantes escritoras brasileiras vivas. Põe viva nisso: a autora de clássicos como Seminário dos Ratos caminha todos os dias, pratica natação desde a adolescência e adora uma boa briga – no sentido intelectual, claro. Talvez daí venha seu segredo de beleza: o importante é “o interior”, diz. Não a interessam as vaidades do mundo, afirma – seu foco são os livros, como a novela que atualmente escreve. Conta que a personagem pediu para ser escrita: “Ela apareceu pela primeira vez em um conto, a personagem WM, uma atriz”, explica. “Veio lá do inferno velho, onde Judas perdeu as botas e as meias, e de repente voltou a bater no meu ombro: ‘Estou aqui, quero voltar’. Como uma velha namorada, um tio que bebe, as personagens voltam também.” Sobre as coisas menos visíveis, Lygia tem pleno domínio. Já quando o assunto é vaidade, que se danem as estribeiras. A imortal não tem medo de soar conservadora em sua defesa da reflexão como contraponto à “futilidade de imagens”. E tece curiosas relações entre vaidade e política. Só para ser chato com ela, vai a indiscrição: segundo o Wikipedia, Lygia viveu belíssimos 82 anos. Assim, você, gatinha que nos acompanha, ouça a voz da experiência – saia já dessa maldita esteira e entre numa livraria.
Você é vaidosa?
Acho que não. Não faria essas operações plásticas, em que o olho acaba indo parar na testa como uma amêndoa. Lá sei, acho que sou anormal! Gosto de me apresentar o melhor possível, mas nunca tomei porre de vaidade. Sem essa coisa desesperada que a mulher vive, só falta pôr um pepino na cabeça. Não tenho essa servidão humana em relação à vaidade. Devia ser corcunda, mas fiz curso de educação física, esgrimava, nadava – nado até hoje. Tenho uma tradição do esporte em mim, procuro ficar bem por meios naturais.
Por que as mulheres gostam de sair peladas nas revistas?
E inclusive mulheres velhas! [risos] É deprimente essa vontade de se exibir. Até mulheres grávidas gostam de mostrar a barriga de nove meses... por que tenho de ver a barriga dela? São coisas íntimas. Eu gosto da privacidade. Uma vez vi aqui perto de casa um casal transando na rua. Passei perto e ainda tive de ouvir: “Nunca viu, tia?”. Respondi: “Assim na esquina é a primeira vez” [risos]. Você não acha que há uma vulgaridade excessiva em nosso tempo?
Mulher é, de fato, mais exibicionista do que homem?
É preciso não pensarmos só nas revistas de débil mental que mostram mulher pelada, peitos, traseiro e tal. Acredito que há uma reação de mulheres escapando dessa servidão ao porre de vaidade. Vejo nas fábricas, nas universidades. Rimbaud uma vez disse: “Já cheguei ao limite da minha linguagem. Agora são as mulheres, quando souberem escrever”. As mulheres desvendam coisas que o homem não atinge, está compreendendo? Estão mais perto de uma cortina que se abre. A mulher consegue entrar no labirinto e sair melhor dele. Acho isso mais interessante do que ficar se exibindo por aí.
Você acha que as mulheres precisam da aprovação de outro – um homem ou outra mulher – para se sentirem belas?
Olha, não pense que sou uma Santa Terezinha do Menino Jesus. Não tenho virtudes, sou frágil. Mas me deixa envergonhada o triunfo da vulgaridade. Não precisa ser vulgar! “Vaidade das vaidades, diz o Pregador no Eclesiastes, tudo é vaidade”. É preciso que a mulher escape dessa absoluta servidão tão humilhante e dolorida. Sim, cuidar do corpo, mas sem chegar ao desfrute nessa ânsia de perfeição para exibi-lo. Todos querem ser Gisele? Somos imperfeitos.
“AS MULHERES DESVENDAM COISAS QUE O HOMEM NÃO ATINGE. A MULHER ENTRA NO LABIRINTO E SAI MELHOR DELE. ISSO É MAIS INTERESSANTE DO QUE SE EXIBIR POR AÍ”
Outro dia li uma notícia dizendo que na China há garotas que quebram as próprias pernas para, quando operarem, ganharem alguns centímetros. O que acha desses modernos sacrifícios?
Bom, não passaria por esse desespero: tenho 1,70 metro, os Fagundes são altos... Mas acho que tudo o que foge à natureza me parece desagradável. É uma agressão ao ser humano. Acho que no Brasil acontece isso. As mulheres agridem sua natureza. Uma amiga minha foi operar o nariz e cortou demais, agora nem sai na rua [risos]. Isso é horrível. As mulheres estão enlouquecidas. Essa servidão em relação a costureiros! Servidão só à arte, se bem que à arte não tenho servidão, mas amor. Umbigos de fora, peitos siliconados transbordando como navios na frente delas [risos]... Sou pela naturalidade.
Qual a relação que você vê entre consumismo e beleza?
Ah, sim, vaidade é o porre do consumismo. Gostei de um recente artigo do Fabio Konder Comparato na Folha, explicando por que os deputados roubam tanto: um quer ter um iate, outro quer uma mansão... O consumismo é uma doença do Terceiro Mundo! Por que não vão às livrarias, as vagabundas, em vez de comprarem casacos de pele? Por que não vão aperfeiçoar o espírito?
Você é uma mulher belíssima . Ser bonita já incomodou?
Não, me sinto bem não sendo um lobisomem [risos], como ocorre com a maioria dos escritores – escritor tem essa fama de enjeitado. Mas nunca me atrelei a isso. O que tenho por dentro é o importante. As mulheres fomentam esse deslumbre em relação à imagem, é triste, é passageiro – porque tem a velhice, a morte... Temos de ir às nossas cavernas, explorá-las enquanto o pensamento está poderoso ainda, e deixar de lado a futilidade. Mulheres morrem nas clínicas de lipoaspiração! Vão ler! Vão estudar! As mulheres são muito mais importantes do que pensam. Perdemos um tempo enorme com essas lojas, essas vitrines. Passo aqui perto de casa, vejo os manequins todos sem cabeça, e percebo que está certo: quem pensa muito em moda não pensa mesmo. Pra que a cabeça?
(Revista TPM edição 50.)
Um comentário:
Me estarrece, sempre.
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